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A Teerã da AppleTV+

Em um dos mais influentes trabalhos da história do mundo pós segunda guerra mundial, o professor de literatura e intelectual Edward Said escreveu sobre como o Ocidente enxerga o Oriente em seu livro “Orientalismo”. Resumidamente, Said explica os equívocos presentes em diferentes análises e representações do mundo árabe e islâmico no Ocidente.

Nesse contexto, “Tehran”, é uma série original israelense lançada pela Apple TV+ no final de Setembro, que conta a história de Tamar Rabinyan, uma jovem agente do Mossad, serviço de inteligência israelense, que viaja para a capital do Irã disfarçada de cidadã iraniana para hackear o sistema aéreo do país. A produção, que foi filmada em Atenas, é repleta de “plot twists” e mostra a perseguição do governo iraniano à Tamar, que se torna foragida nas ruas de Teerã. Mas, o que chama mais atenção, é como a obra daria um prato cheio para as análises do autor de “Orientalismo”. 

Focada no estereótipo e na negatividade da repressora sociedade iraniana, “Tehran” explora pouco, de fato, o conflito em si ou suas causas na perspectiva geopolítica do Oriente Médio, e falha em mostrar os dois lados ou a complexidade desse embate, mesmo que minimamente. A série centraliza seu olhar muito mais em aspectos reprováveis da sociedade iraniana, a demonizando, em um posicionamento que não apresenta nenhuma nuance ou pudores de se posicionar enfaticamente a favor de Israel.

Tal impressão fica evidente logo no primeiro episódio, quando Tamar, a espiã protagonista, chega à capital e de cara se depara com um enforcamento em praça pública no centro da cidade. Para logo em seguida sofrer na própria pele uma experiência de abuso e uma tentativa de estupro. A violência contra a mulher e o ódio a Israel são temas recorrentes e mostrados mais de uma vez ao longo da temporada de 8 episódios.

Claro que é importante levar em consideração alguns pontos relevantes abordados na série, afinal, o Irã está longe de ser um país democrático e enfrenta muitos problemas. Principalmente em relação às liberdades individuais. Temas como a repressão às mulheres, obrigadas a usar o “hijab” em público, as festas clandestinas em apartamentos em um país onde o consumo de álcool é proibido, a repressão brutal aos protestos de uma juventude mais liberal e a tortura são pertinentes e retratados.

“Tehran” também mostra um Irã dividido, com uma juventude buscando um estilo de vida mais liberal de um lado, e, do outro, aqueles que defendem o conservadorismo presente no regime iraniano. Dessa forma, a série humaniza e chama atenção para a existência de jovens lutando para uma maior secularização de um país de 83 milhões de habitantes em um Estado composto por 99% da população muçulmana, de acordo com números oficiais do governo.

Um estudo conduzido pelo Grupo para Analisar e Medir Atitudes no Irã (GAMAAN), uma fundação sem fins lucrativos na Holanda, mostra que a secularização no país vem crescendo. A pesquisa, conduzida online em Junho de 2020, mostra que metade dos 50 mil entrevistados admitiu estar perdendo o vínculo com a religião e que 68% dos jovens acredita em uma separação entre Estado e valores religiosos.

A insatisfação com o estilo de vida ultraconservador pode ser notada também em outros aspectos da sociedade iraniana. Movimentos como o “My Stealthy Freedom”, que tem como objetivo lutar contra a desigualdade de gênero no país (ranqueado 185 de 187 em questões de igualdade entre homens e mulheres de acordo com o World Economic Forum) mostra que mulheres estão cada vez mais insatisfeitas com a discriminação, por exemplo, no mercado de trabalho.

Outro exemplo é o surgimento do #Metoo no país, onde mulheres começaram a denunciar casos de assédio sexual e estupro. O movimento repercutiu em redes sociais e até levou à prisão de um homem com as iniciais KE, acusado mais de uma vez por estupro. No Irã, mulheres podem enfrentar acusações legais se denunciarem esse tipo de crime, e, por isso, a prisão de KE foi considerada uma grande vitória.

Por esses e outros motivos, é sempre importante considerarmos a ideia de Said quando falamos do Oriente. Muitas vezes, o que vemos em séries e o que repercute em veículos de mídia é apenas uma representação ou um lado de uma história muito mais complexa.

A reprodução de estereótipos e a análise superficial não é novidade em produções de televisão. Séries como a famosa “Homeland” e “Fauda” também enfrentaram críticas por especialistas em Oriente Médio por abordarem a história de forma tendenciosa e superficial. “Tehran”, portanto, não é um caso à parte. 

O Irã é sim um país ultraconservador e existem muitas críticas quando falamos em questões como liberdade de expressão e direitos humanos. Porém, reduzir um país tão culturalmente e historicamente rico a um conflito e fazer uma análise superficial é um grande erro e uma falsa realidade que não deveria ser reproduzida, já diria Edward Said em “Orientalismo”.

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