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Entre a literatura e a diplomacia

Por que há tantos autores servindo em embaixadas pelo mundo afora? Acadêmicos, escritores e diplomatas explicam.

Rio de Janeiro, 1895. O escritor maranhense Aluísio Azevedo (1857-1913) surpreende a todos ao anunciar, bem no auge do sucesso, que está abandonando a cena literária brasileira. Não satisfeito, o fundador da cadeira nº 4 da Academia Brasileira de Letras (ABL) decide vender, por 10 contos de réis, todos os direitos de sua obra – que incluía obras-primas da literatura nacional, como O Mulato (1881), Casa de Pensão (1884) e O Cortiço (1890) – à editora Garnier. O que teria levado o principal nome do naturalismo brasileiro a tomar uma decisão tão drástica? 

“A instabilidade financeira teve um peso grande”, afirma Orna Messer Levin, doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e organizadora da antologia Ficção Completa de Aluísio Azevedo (2005). “Aluísio Azevedo foi um ativista engajado na defesa dos direitos autorais no Brasil. Ajudou a reforçar o debate público em torno da necessidade de garantir um pagamento justo aos escritores pela publicação, reprodução e tradução de seus textos. A demora na regulamentação dos direitos autorais certamente desanimou todos aqueles que tentavam viver exclusivamente dos rendimentos da própria pena”. 

No mesmo ano em que se despediu da literatura, Azevedo, então com 38 anos, abraçou a diplomacia. Seu primeiro posto foi Vigo, cidade portuária da Espanha. Depois, serviu no Japão, Argentina, Inglaterra, Itália e Paraguai. Morreu de infarto aos 55 anos, e foi sepultado em Buenos Aires, onde servia como vice-cônsul. Sua esposa, Pastora Luquez, e filhos, Pastor e Zulema, eram argentinos. Seis anos depois, por iniciativa do também escritor Coelho Neto (1864-1934), os restos mortais de Aluísio Azevedo foram trasladados para São Luís, no Maranhão. 

A ‘velha guarda’

O caso de Aluísio Azevedo não é isolado. São incontáveis os exemplos de escritores que seguiram a vida diplomática. E de diplomatas que debutaram na carreira literária. Os casos mais notórios talvez sejam os do mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967), do carioca Vinícius de Moraes (1913-1980) e do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Mas, há outros. Muitos outros. Um deles é o jornalista e escritor gaúcho Raul Bopp (1898-1984). 

“Como não há a profissionalização do escritor entre nós, como carecemos de um público leitor para a produção local, como não há cadeiras de escrita criativa nas nossas universidades, resta ao escritor manter uma vida paralela em outra profissão. Pode ser o magistério, a publicidade, o serviço público”, explica o escritor paranaense Miguel Sanches Neto, doutor em Letras pela Unicamp e autor do artigo Vinícius de Moraes – O Poeta da Proximidade, do livro O Itamaraty na Cultura Brasileira (2002), organizado por Alberto da Costa e Silva. “No caso do Itamaraty, há um chamariz cultural, pois o escritor pode viver outras experiências, tem também a questão do uso de outras línguas e, por fim, a oportunidade de buscar uma inserção maior no mercado editorial do exterior. Estas questões fazem da carreira diplomática uma área fascinante para escritores e candidatos a escritores”. 

Raul Bopp em Kobe, Japão

Um dos integrantes do movimento antropofágico, ao lado de Oswald de Andrade (1890-1954) e Tarsila do Amaral (1883-1973), Raul Bopp já tinha escrito Cobra Norato (1931) – “possivelmente o mais brasileiro de todos os poemas brasileiros escritos em qualquer tempo”, nas palavras do mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) – quando ingressou no Itamaraty, um ano depois. Em 1932, seu amigo, o então presidente da República, Getúlio Vargas, o nomeou cônsul em Kobe, no Japão. Até 1963, quando se aposentou, passou por mais sete países: EUA, Portugal, Suíça, Espanha, Guatemala, Áustria e Peru. “Com todo respeito à trajetória profissional de Rosa, Vinícius e Cabral, nenhum deles será lembrado pelo trabalho diplomático. Ainda bem para a literatura!”, brinca o escritor e imortal carioca Antônio Carlos Secchin, doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Tampouco Bopp, apesar de ter sido mais atuante do que os demais citados. Consta ter sido o introdutor da soja no país, o que já seria excelente contribuição”. 

De Cordisburgo para o mundo

O escritor mineiro Guimarães Rosa (1908-1967) ingressou no Ministério das Relações Exteriores (MRE) apenas dois anos depois de Bopp: 1934. O futuro autor de Grande Sertão: Veredas (1956) tinha apenas 26 anos quando foi aprovado no concurso do Instituto Rio Branco em segundo lugar. Para seguir carreira no Itamaraty, precisou abandonar outro ofício: o de médico. “Não nasci para isso”, confidenciou em carta para um amigo. 

Em 1938, Rosa foi enviado para o Consulado do Brasil, em Hamburgo, na Alemanha, onde serviu como cônsul-adjunto. Lá, conheceu Aracy Moebius de Carvalho (1908-2011), chefe do setor de passaportes. “É reconhecido hoje amplamente que sua mulher, Aracy, com seu conhecimento e autorização, ajudou a salvar muitos judeus que fugiam do nazismo para se abrigarem no Brasil”, relata o escritor, imortal e diplomata potiguar João Almino, autor de 19 livros entre ficção e não-ficção, como Entre facas, algodão (2017). “Algumas crônicas escritas por Guimarães Rosa quando servia em Hamburgo tratam da questão da perseguição aos judeus. Uma delas, intitulada A Velha, conta a história de uma senhora que queria salvar a filha da perseguição de Hitler com o argumento de que não era filha do seu marido judeu, mas nascida de uma relação extraconjugal no Brasil”.  

Por sua coragem e bravura, Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, o “Anjo de Hamburgo”, teve seu nome incluído entre os quase 22 mil que estão no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto, em Jerusalém. “Nunca tive medo. Quem tinha era o Joãozinho”, declarou em 1983, aos 75 anos, em entrevista ao Jornal do Brasil. “Ele dizia que eu exagerava, mas não se metia”. 

Aracy de Carvalho e Guimarães Rosa em Paris

Foi em Hamburgo, aliás, que Rosa viveu a maior aventura de sua vida. Ou, pelo menos, uma delas. Tabagista contumaz, acordou, certa noite de 1941, com vontade de fumar. Como não havia cigarro em casa, saiu para comprar. Estava na rua, à procura de um estabelecimento comercial, quando ouviu a sirene de ataque aéreo. Na mesma hora, correu para o abrigo mais próximo, onde passou a madrugada. Pela manhã, ao voltar para casa, quase caiu para trás ao constatar que o prédio onde morava havia sido bombardeado. Essa e outras histórias da Segunda Guerra Mundial foram narradas no ainda inédito Diário de Hamburgo. Sem previsão de lançamento, o manuscrito, de 208 páginas, está guardado na Biblioteca Central da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 

Depois de sua temporada em Hamburgo, que durou até 1942, quando o Brasil rompeu relações com a Alemanha, Rosa seguiu para Bogotá, na Colômbia, e para Paris, na França. Em 1951, retornou ao Brasil, de onde não saiu mais. Em 1963, foi eleito para a ABL, mas – por superstição, talvez – adiou a posse por quatro anos. Em 1967, durante seu discurso, declarou: “A gente morre é para provar que viveu”. Três dias depois, fumante, cardíaco e sedentário, não resistiu a um infarto. “Viver é muito perigoso: sempre acaba em morte”, diria Riobaldo em Grande Sertão: Veredas

Guimarães Rosa em frente à sede do Itamaraty, no Rio de Janeiro Foto: David Zingg/Acervo Instituto Moreira Salles

“A vontade de viajar foi o que motivou Guimarães Rosa a escolher a diplomacia. Era um médico do interior de Minas que lia muito e sonhava conhecer lugares novos”, afirma Marcelo Bortoloti, doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ. “Rosa acabou se encantando e ‘vestindo a camisa’ da diplomacia. Dizia que o diplomata é um sonhador que procura consertar o que os políticos destroem”. 

Luz, câmera, ação!”

Dois importantes poetas brasileiros também foram diplomatas de carreira: Vinícius de Moraes (1913-1980) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999). O primeiro foi aprovado em 1943, aos 30 anos; e o segundo, em 1945, aos 25. Vinícius ingressou no Itamaraty por sugestão do amigo e chanceler Oswaldo Aranha (1894-1960). Formado em Letras e Direito, prestou o concurso, pela primeira vez, em 1942. Não passou. No ano seguinte, tentou novamente. Dessa vez, foi aprovado. 

Em 1946, Vinícius assumiu o posto de vice-cônsul em Los Angeles, onde permaneceu por cinco anos. Em Hollywood, reencontrou o cineasta Orson Welles, que conhecera no Rio em 1942, e a atriz e cantora Carmen Miranda, amiga desde os tempos do Cassino da Urca. “Vinícius era cinéfilo e queria ser diretor de cinema. Por essa razão, pediu a Welles que lhe indicasse um curso de cinema. Em vez disso, o cineasta o convidou para acompanhar as filmagens de A Dama de Shanghai (1947), estrelado por sua mulher, Rita Hayworth. Foi o melhor curso intensivo que o Vinícius poderia ter feito na vida”, diverte-se o escritor e musicólogo Ricardo Cravo Albin, autor de Vinícius de Moraes – Embaixador do Brasil (2010). Dos EUA, seguiu para a França e, mais adiante, para o Uruguai. 

Orson Welles e Vinícius de Moraes no Rio de Janeiro, em 1942

Vinícius de Moraes estava em Lisboa, participando de uma série de concertos com Chico Buarque, Nara Leão e Baden Powell, quando soube, em 1968, que tinha sido aposentado compulsoriamente pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5). Não foi o único. Outros 12 diplomatas, sob os mais variados pretextos, também foram exonerados. No caso de Vinícius, o motivo alegado era seu “comportamento boêmio” que o impediria de exercer suas funções como primeiro secretário. “Sua conduta é incompatível com as exigências e o decoro da carreira diplomática”, dizia o texto que tratava de sua exoneração. Morto em 1980, de edema pulmonar, Vinícius foi anistiado (post-mortem) em 1998 e promovido a embaixador, o mais alto cargo da carreira diplomática, em 2010. 

Incompatibilidade de gênios?

Nenhum escritor ingressou tão cedo no Itamaraty e permaneceu tanto tempo lá quanto João Cabral de Melo Neto. O autor de Morte e Vida Severina (1955) foi aprovado quando tinha apenas 25 anos – um a menos que Rosa – e, ao longo de sua carreira diplomática, que durou de 1945 a 1990, passou por nove países: Espanha, Inglaterra, França, Suíça, Paraguai, Senegal, Equador, Honduras e Portugal. 

Em 45 anos de MRE, Cabral colecionou encontros memoráveis. Em 1947, quando morava na Catalunha, tornou-se amigo do pintor Joan Miró (1893-1983). Em 1950, visitou a escritora Clarice Lispector (1920-1977) em um hospital de Londres – a escritora ucraniana naturalizada brasileira tinha acabado de sofrer um aborto espontâneo. “Quase morri. Fui levada desacordada para um hospital e, quando abri os olhos, estava sentado junto de mim, com cara de santo, o João Cabral”, relata a autora em entrevista ao jornal O Globo de 1976. Curiosamente, Clarice foi casada com um diplomata, Maury Gurgel Valente (1921-1994), por 16 anos. O casal teve dois filhos. 

Clarice Lispector ao lado do marido, o diplomata Maury Gurgel Valente em Berna, Suíça, 1946. Foto: Acervo Clarice Lispector I Instituto Moreira Salles

Em Genebra, na Suíça, onde morou de 1964 a 1967, Cabral travou um diálogo com Vinícius que ficou famoso. A certa altura da visita, o “poetinha”, que estava trabalhando em Paris, pegou seu violão e, para a tristeza do anfitrião, começou a dedilhar uma de suas mais recentes canções. “Me desculpe, Vinícius”, interrompeu Cabral. “Mas, por que todas as tuas músicas falam de coração? Será que você não tem outra víscera para cantar?”. “Pois é, João, você continua o mesmo nordestino seco”, rebateu Vinícius. “Mas, um dia, ainda hei de colocar música em um desses teus poemas de cabra”. 

Vinicius de Moraes com o poeta João Cabral de Melo Neto. Paris, década de 1960. Acervo pessoal

“Por mais que suas criações literárias revelassem grande distanciamento, João Cabral foi muito amigo de Vinícius. Havia grande respeito e admiração entre os dois. João Cabral dizia que Vinícius era dos maiores poetas que conhecera, mas não gostava da relação do amigo com a canção popular”, explica Roniere Silva Menezes, doutor em Literatura Comparada pela UFMG e autor de O Traço, A Letra e A Bossa: Arte e Diplomacia em Cabral, Rosa e Vinícius (2011). Em 1987, Cabral foi transferido para o Rio, onde viveu até sua morte, em 1999, aos 79 anos. “Se eu não tivesse sido diplomata, minha literatura teria sido completamente diferente”, costumava dizer.

Quando estava em Sevilha, João Cabral gostava de matar saudades do amigo Rubem Braga (1913-1990). Embora não fosse diplomata de carreira, Braga serviu como embaixador em Rabat, no Marrocos. Pelo menos uma vez por mês, os dois se encontravam no porto de Tânger, no estreito de Gibraltar. Segundo o jornalista José Castello, autor de Na Cobertura de Rubem Braga (1996), o “Urso” – como era conhecido o cronista capixaba – sofreu com os costumes islâmicos. Nas recepções oficiais, era obrigado a consumir sucos de abacaxi ou graviola, e as mulheres estavam sempre cobertas de véu, da cabeça aos pés. “Às vezes, tenho a sensação de que estou em um convento”, resmungava. 

Rubem Braga, a atriz Tônia Carreiro, a poetisa Marly de Oliveira e seu marido João Cabral de Mello Neto

Caça às bruxas

A relação do Itamaraty com alguns de seus “escritores-diplomatas” nem sempre foi das mais amistosas. Em 1952, João Cabral foi acusado de subversão. Por esse motivo, foi convocado a responder a um inquérito no Brasil e colocado em disponibilidade, sem direito a salário, por suposto envolvimento com o comunismo. Afastado de suas funções, passou a trabalhar em jornais, onde escrevia de editoriais a obituários, para sobreviver. Inconformado, impetrou mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF), em 1953, pedindo a anulação da sentença, e foi reintegrado à carreira diplomática, um ano depois. 

O filólogo Antônio Houaiss (1915-1999) e o ensaísta José Guilherme Merquior (1941-1991) também tiveram seus dissabores. Em 1952, durante o governo Vargas, Houaiss também foi afastado de suas funções. Motivo? Subversão. Reintegrado dois anos depois, voltou a sofrer perseguição em 1964, quando teve seus direitos políticos cassados e sua aposentadoria precocemente decretada. Diplomata desde 1962, quando foi aprovado em primeiro lugar, Merquior foi intimado a prestar depoimento quatro anos depois por suspeita de envolvimento com grupos de esquerda. Foi investigado por ter dado palestra no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), organizado um festival de cinema russo no Museu de Arte Moderna (MAM) e coordenado uma exposição de fotógrafos cubanos em Brasília. 

Antônio Houaiss e Vinícius de Moraes. Foto: Paulo Garcez / Arquivo Pessoal

“Na figura de seu chanceler, o Ministério das Relações Exteriores segue as diretrizes estabelecidas pelo governo, seja ele ditatorial (como foram os do período militar), seja ele eleito indiretamente (como foi o do presidente José Sarney), seja ele eleito pelo povo (como foram os que vieram a partir de Fernando Collor de Mello). Acontece que, às vezes, o Poder Executivo se julga no direito de descartar profissionais de carreira que, embora preparados e extremamente competentes, discordam da linha determinada pelo governo. É a execrável ‘caça às bruxas’ que (conheço vários exemplos) prejudica e chega a abortar trajetórias que seriam brilhantes. Por intolerância, abre-se mão de profissionais de excelência, causando danos irreparáveis à política externa e ao país. Esse tipo de perseguição pode afetar a carreira de diplomatas, sejam eles escritores ou não, bem como a de funcionários administrativos menos graduados do serviço exterior. Triste realidade”, afirma o escritor e ex-diplomata carioca Francisco José Alonso Vellozo Azevedo, que conheceu pessoalmente, entre outros, Cabral, Vinícius e Houaiss. 

Exceção da regra

Dos sete escritores-diplomatas citados até aqui nesta reportagem, todos são homens. A exceção tem nome e sobrenome: Cecília Prada. “São realmente poucas as nossas representantes no Governo, no Congresso, no Judiciário. Até hoje, no Instituto Rio Branco, é diminuto o número de mulheres que se formam. Somos um país essencialmente machista”, lamenta Prada, citando o nome de outra escritora-diplomata, a poetisa carioca Dora Alencar de Vasconcellos (1910-1973), que serviu em cinco postos: EUA, Canadá, Trinidad e Tobago, Barbados e Jamaica. 

Em 1955, aos 26 anos e com dois diplomas universitários, de Letras e Jornalismo, Prada tornou-se a sexta mulher a entrar para o MRE. Não ficou muito tempo. Em 1958, ao se casar com o também diplomata e escritor Sérgio Paulo Rouanet, que conhecera no Instituto Rio Branco, foi obrigada a pedir demissão. “Em caso de casamento entre colegas diplomatas, a mulher pedirá demissão”, dizia o regulamento. “Até pensei em pedir um mandado de segurança, mas, meu noivo pediu: ‘Não faça isso. Vai prejudicar a minha carreira’. E iria mesmo, sem dúvida. Nunca seríamos perdoados pela insubordinação”, afirma Prada. Desde 1973, quando se separou do marido, tentou ser reintegrada ao quadro diplomático do Itamaraty, por diversas vezes, mas não conseguiu. 

A jornalista e ex-diplomata Cecília Prada, em seu apartamento, em Campinas. Foto de Silvia Zamboni/ Folhapress

Como escritora, Prada publicou 16 livros – Ponto Morto (1955), o primeiro deles, teve prefácio assinado por Lygia Fagundes Telles – e ganhou quatro prêmios literários – O Caos na Sala de Jantar (1978) levou o de Revelação, da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Como jornalista, foi a primeira mulher a ganhar, sozinha, o Prêmio Esso de Reportagem/1980 por matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo sobre denúncias de maus-tratos em uma instituição psiquiátrica para jovens. Desde 2008, mora em Campinas, com um dos filhos. 

Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora da dissertação O Itamaraty e a Cultura Brasileira: 1945-1964 (2006), Flávia Crespo pondera que não é todo escritor que daria um ótimo diplomata, mas admite que há características do bom operário da palavra que são essenciais para quem sonha em seguir a carreira diplomática. “Desde os tempos de Rio Branco, a diversidade de perfis sempre foi valorizada. Um país com imagem internacional em construção precisava que sua diplomacia fosse formada não só por profissionais competentes, mas também por pessoas que fossem, individual e coletivamente, o espelho de um ideal de nação. E quem melhor poderia cumprir a missão de “representar, sendo”, senão nomes como João Cabral de Melo Neto ou Alberto da Costa e Silva? Além desse importante aspecto simbólico, há a competência inegável de cada um desses diplomatas, gigantes na carreira. Na prática diária do ofício burocrático, registrada em memorandos, despachos e pareceres, esses homens empenharam seu conhecimento, cultura e criatividade na rotina do trabalho diplomático e consular, o que é, no mínimo, fascinante”.

A ‘nova geração’

Mas, afinal, por que há tantos escritores, seguindo a carreira diplomática, pelo mundo afora? O que a literatura e a diplomacia teriam em comum? Na opinião do escritor e diplomata de carreira, hoje aposentado, Edgard Telles Ribeiro, são muitas as razões que levam certos autores a enveredar pela carreira diplomática. Ou vice-versa. “Afinidades intelectuais, por se tratar de uma carreira essencialmente humanista? Contato frequente com outras culturas, como fonte de inspiração? Lazer no contexto de uma atividade que pode ser massacrante em certos postos e mais amena em outros? Tudo isso provavelmente… E algo mais que caberia a cada um deles detalhar”, observa o autor de 13 livros que, em 48 anos de MRE, serviu nos EUA, Guatemala, Equador, Nova Zelândia e Tailândia. 

Autor de Matias na Cidade (2005), Sérgio Y. Vai à América (2012) e Cloro (2018), o diplomata paulista Alexandre Vidal Porto, de 55 anos, arrisca duas respostas: “Diplomatas devem observar e analisar sociedades das quais não fazem parte. Da mesma forma, escritores contam histórias que não são suas. As duas atividades exigem um certo distanciamento de seu objeto”, afirma Porto, que já serviu em cidades como Nova Iorque, Santiago, Cambridge, Washington, Cidade do México e Tóquio. “Além disso, a diplomacia propicia uma fonte de renda que evita as pressões financeiras. Considerando-se que escritores em geral têm de ter mais de um emprego para se sustentar, a diplomacia parece ser uma boa alternativa”. Mestre em Direito pela Universidade de Harvard, Porto vive atualmente em Frankfurt, na Alemanha. 

Alexandre Vidal Porto. Foto: Alexia Fidalgo

Paranaense de Santo Antônio da Platina, a 362 km de Curitiba, Krishna Monteiro, de 47 anos, iniciou a carreira diplomática em 2008. De lá para cá, serviu no Sudão, Inglaterra, Índia e Tanzânia. Autor de O Que Não Existe Mais (2015) e O Mal de Lázaro (2018), Monteiro lembra que o fenômeno não se restringe ao Brasil. E cita os exemplos dos poetas chileno Pablo Neruda (1904-1973) e mexicano Octavio Paz (1914-1998). “Arriscaria dizer que todo escritor tem um certo fascínio pela figura do desconhecido, do “outro”. Essa procura pela alteridade pode, assim, refletir-se numa busca pelo “mundo”, por aquilo que se encontra além das fronteiras de seu próprio país”, divaga. “Outra possível resposta: a diplomacia é uma profissão que se exerce, fundamentalmente, por meio da palavra (seja ela falada ou escrita). O campo da palavra seria um domínio comum ao diplomata e ao escritor”. 

Diplomata desde 2006, o carioca Gustavo Pacheco, de 48 anos, já serviu na Argentina e no México. Estreou na literatura em 2018, aos 46 anos. Seu primeiro livro, a coletânea de contos, Alguns Humanos, ganhou o Prêmio Clarice Lispector, concedido pela Biblioteca Nacional. Além de diplomata e escritor, Pacheco é antropólogo. “Prefiro ver a antropologia, a diplomacia e a literatura como manifestações distintas de uma mesma coisa: a curiosidade por maneiras de entender e viver o mundo que são diferentes das minhas. O Alguns Humanos (2018) tem a marca dessa curiosidade”, define. “Em termos práticos, a diplomacia foi o que me levou a morar em Buenos Aires, e isso, sim, foi decisivo. É uma cidade que respira literatura e isso me estimulou muito. Escrevi quase todos os contos enquanto morava lá. Talvez tivesse escrito Alguns Humanos se não fosse diplomata, mas o livro não existiria se eu não tivesse morado em Buenos Aires”, observa. 

Gustavo Pacheco, que lança ‘Alguns Humanos’ e participa da Festa Literária Internacional de Paraty, que vai de 25 a 29 de julho – André Coelho/Folhapress

Mas, na hora de escrever, o ofício de diplomata ajuda ou atrapalha o escritor? Quando o assunto é inspiração, nossos diplomatas estão mais para o poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886-1986) – “Não escrevo quando eu quero e, sim, quando ela, a inspiração, quer” – ou para o cronista gaúcho Luís Fernando Veríssimo, de 83 anos – “Minha musa inspiradora é o prazo de entrega”? Quem responde é o carioca Maurício Lyrio, de 53 anos. Dos representantes da nova geração, é o que tem mais tempo de Itamaraty: 27 anos. Desde que ingressou no MRE em 1993, trabalhou nos EUA, Argentina e China. Atualmente, vive na Cidade do México. 

“Não tenho a felicidade de ser frequentado pela musa inspiradora do Manuel Bandeira, nem a infelicidade dos prazos do Luís Fernando Veríssimo. Tenho, no entanto, uma autodisciplina pouco piedosa. Escrevo no tempo que resta, sempre que possível, descontado meu trabalho como diplomata, que me toma mais de oito horas por dia, e da minha vida de casado e pai de quatro filhos. Não há, portanto, melhor momento para escrever que as primeiras horas da manhã, quando a mente é fresca, o silêncio absoluto e as demandas de trabalho e família ainda não tiveram tempo de se materializar”, confessa o autor de Memória da Pedra (2013) e O Imortal (2018). 

*André Bernardo é jornalista. Além do Clipping, escreve para BBC Brasil, VICE e UOL. É aficcionado por cinema, literatura e música e autor do livro “A Seguir, Cenas do Próximo Capítulo (Panda Books)”, sobre teledramaturgia brasileira.

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