O resultado do CACD 2016 divulgado pelo CESPE ainda não é o definitivo. Com a autorização e apoio dos professores envolvidos divulgamos as respostas modelo / orientação de recursos dos professores Tanguy Baghadi (PI ) e João Felipe (GEO) ; Guilherme Bystronski (DIP); João Daniel (HB) e Cléo Franco (ING) do Curso Clio.
Índice de respostas modelo / orientação de recursos:
Política Internacional e Geografia
Considerações gerais sobre a prova de Política Internacional
Depois de todo o medo e especulação sobre o formato da prova de Política Internacional, o dia 24 de setembro nos trouxe uma resposta. Ela veio por meio de uma prova bem mais fácil do que a do ano passado – que foi composta por uma questão puramente conceitual e outra sobre as relações sino-japonesas. A prova de 2016 foi mesclada. Uma questão bem pé no chão: fatos, argumentos, discursos. Questão de formato tradicional em Política Internacional. E outra que exigia uma reflexão mais ampla, uma visão do todo, interrelacionando arranjos regionais – tomando a Parceria Trans-Pacífico como mote – e arranjos multilaterais.
A primeira questão tinha um espaço temporal muito bem definido: do período que compreende a criação do Mercosul, em 1991, até o momento atual. A informação de partida é que, ao longo de todo este período, o tema da democracia esteve muito presente em todos os discursos e projetos desenvolvidos pela política externa brasileira. A recente democratização demandava da América Latina a construção de credenciais democráticas, que poderiam aparecer na introdução da questão, para mostrar a centralidade do tema para o bloco. Se o objetivo do Mercosul era permitir a inserção dos seus integrantes no mundo, credibilidade é um atributo indispensável.
A democracia oferece esta credibilidade, assim como a transparência, estabilidade econômica e abertura comercial – todas, preocupações do Mercosul. Estas são as bases do bloco, e a democracia é um de seus pilares. A próxima parada da resposta poderia ser a inclusão da democracia como uma regra. A afirmação de que a democracia é crucial para o Mercosul não impediu que o general paraguaio Lino Oviedo tentasse um golpe sobre o presidente Juan Carlos Wasmosy, em 1996.
A participação brasileira na frustração do golpe foi importante, e o legado foi a necessidade de uma estruturação mais clara do sistema de preservação da democracia no Mercosul. Em 1998, esta preocupação materializou-se na aprovação do Protocolo de Ushuaia, que tinha que aparecer na resposta. Este protocolo – a primeira Cláusula Democrática do MERCOSUL – previa a possibilidade de suspensão de qualquer integrante do bloco que violasse a democracia, ainda que não apresentasse qualquer definição clara acerca do que considera uma democracia. O documento faz menção à “ordem democrática”, tida como condição necessária para o bom funcionamento do bloco. E a suspensão é matizada: desde o impedimento da participação do estado nos trabalhos do bloco, até a suspensão dos direitos e obrigações resultantes do funcionamento do bloco.
A essa altura, era necessário que sua prova já tivesse mostrado os fundamentos da cláusula e sua materialização, num primeiro passo evolutivo. Em 2010, a Unasul passava pelo seu processo de estruturação: fora criada em 2008, depois de anos de negociações, e precisava criar sua base institucional, em um movimento parecido – guardadas as devidas proporções – com aquele feito pelo Mercosul 10 anos antes. Neste ano, os presidentes sul-americanos se reuniram em Georgetown e aprovaram uma cláusula democrática para a Unasul.
O conteúdo deste protocolo adicional era uma atualização da ideia de democracia na América Latina, e previa medidas mais duras do que o Protocolo de Ushuaia. As punições passavam de possíveis suspensões do Unasul, podendo evoluir até sanções econômicas, corte do fornecimento de energia e fechamento de fronteiras. O impacto no Mercosul foi instantâneo. Os quatro membros do Mercosul – naturalmente incluídos nos debates de Georgetown, importaram o novo padrão de cláusula democrática, e criaram o Protocolo de Montevidéu, em 2011. O Protocolo de Ushuaia não estava revogado, mas surgia um documento com termos mais fortes, um cláusula democrática 2.0 (não por acaso, chamado de Ushuaia II).
Aqui, começam os problemas: o presidente paraguaio, Fernando Lugo, concordou com os termos do Protocolo de Montevidéu, o que levou a uma reação negativa por parte do senado daquele país. Lugo tinha uma rejeição altíssima em meio ao legislativo e, em 2012, teve contra si a abertura de um processo de impeachment. Uma das alegações deste pedido era que Lugo violara a soberania paraguaia ao assinar o Protocolo de Montevidéu, que punha nas mãos dos vizinhos a avaliação sobre o que era a democracia paraguaia.
O impeachment foi aprovado e as consequências para o MERCOSUL foram intensas: o bloco se reuniu para debater a aplicação do Protocolo de Ushuaia, pela primeira vez, e o Paraguai foi suspenso do Mercosul. O debate sobre o conceito de democracia era intenso. Lugo e seus partidários ressaltavam o fato de o presidente ter sido afastado depois de um processo que durara menos de dois dias. Seus detratores argumentavam que a constituição permitia tal manobra – resquício da abertura democrática, que deu amplos poderes ao congresso, para evitar um presidente centralizador, como Stroessner.
A destituição de Fernando Lugo veio em um momento no qual a Venezuela tentava ingressar no Mercosul, e contava com resoluto apoio de Brasil, Argentina e Uruguai. O Paraguai resistia a aprovar, no senado, o ingresso do país de Hugo Chávez, em grande medida contrariando a preferência de Fernando Lugo. Quando o impeachment foi aprovado, houve hesitação: com a suspensão do Paraguai, como ficaria o processo decisório do bloco?
O voto paraguaio ainda contaria ou poderia ser ignorado? Sem que houvesse uma resposta nítida para o dilema, já que o Protocolo de Ushuaia silencia sobre os efeitos da suspensão, a Venezuela foi admitida no bloco. A resposta tinha que deixar claro que a suspensão do Paraguai se deu por meio do Protocolo de Ushuaia, já que o de Montevidéu ainda não está em vigor. Ainda falta a aprovação por parte do… Paraguai. O debate final da questão poderia ser centrado na atual conjuntura da Venezuela. Ainda que não tenha havido um golpe no país, há indícios – reforçados pelo atual governo brasileiro, de que o país não possui uma democracia plena. O Paraguai vem pressionando para que o Protocolo de Ushuaia seja aplicado contra o governo de Nicolas Maduro, o que parecia uma quimera há alguns meses. Mas, com a ascensão de Macri e Temer à presidência de seus países, esta possibilidade já não parece tão remota. O desafio central na aplicação das cláusulas ainda são a dificuldade de caracterizar uma violação à ordem democrática e a demora em aprovar o Protocolo de Montevidéu. As perspectivas a serem apresentadas na questão dependem da argumentação definida ao longo da questão, que era trabalhosa, mas não difícil para quem dominasse os debates mercosulinos em torno da democracia nos últimos anos.
Esta questão versa sobre o tema do comércio internacional, que foi amplamente recomendado ao longo de toda a preparação, uma vez que o governo de Michel Temer dá uma ênfase muito grande ao assunto. No entanto, há uma surpresa, que é o enfoque conceitual apresentado pela questão, que não se relaciona diretamente ao Brasil. E chama atenção também o fato de a questão pedir o desenvolvimento de um tema tão amplo em apenas 60 linhas. Um dos tópicos necessários para esta resposta pede o desenvolvimento do conceito de regionalismo comercial. Para tal, poderia-se argumentar que o regionalismo refere-se a um processo de oficialização de laços comerciais entre países de uma mesma região.
Note-se que é um processo conduzido pelo Estado, com marcos jurídicos claros, que intensificam as trocas comerciais e criam marcos normativos a serem seguidos pelos Estados. É, portanto, diferente da regionalização, que é um processo de aproximação entre países de uma mesma região, sem que haja – necessariamente – uma formalização de compromissos. Neste sentido, ainda que o regionalismo possa soar com um óbice ao multilateralismo, percebe-se que ele acaba por fortalecer o sistema multilateral, por (i) garantir a diminuição das barreiras tarifárias dos países que se inserem em processos de integração; (ii) por conferir competitividade aos blocos regionais, que passam a ver a competição comercial como benéfica; (iii) por permitir que grandes acordos entre blocos sejam firmados, o que contribui para soluções relativamente céleres e com resultados importantes.
Uma vez que os blocos ajudam a reduzir o protecionismo, o trabalho das instituições multilaterais – como a OMC – fica mais fácil. Há risco, no entanto, quando o sistema de negociações multilateral não apresenta avanços. Desde que a OMC foi criada, em 1994, pouquíssimos acordos foram, de fato, firmados em âmbito multilateral. O acordo sobre Facilitação de Comércio, de 2013, é um caso isolado. Neste sentido, o regionalismo surge como uma opção importante, uma vez que os países sentem necessidade de firmar acordos comerciais, sobretudo em âmbitos regionais, em que a agilidade é sempre maior. É relevante observar que o caráter obrigatoriamente inclusivo das negociações da OMC – que segue o princípio do single undertaking – acaba por se mostrar como sua maior dificuldade, uma vez que qualquer oposição a qualquer acordo é suficiente para bloquear as negociações, o que acaba por significar a exigência de um improvável consenso internacional.
As negociações regionais partem da premissa de que apenas países interessados em conceder e receber concessões participam das negociações. Em momentos de desgaste das negociações multilaterais, pode haver a tendência de concentração dos Estados em negociações regionais, que apresentam prognósticos mais claros de apresentação de algum resultado de curto prazo. Tal tendência fica nítida quando observa-se que a Rodada do Desenvolvimento já dura 15 anos, quando sua previsão inicial era de encerramento em apenas 4 anos.
Neste sentido, o TPP se apresenta como o exemplo mais paradigmático, pela grandiosidade da iniciativa. Neste sentido, pode-se depreender que há prejuízo à ordem multilateral, porque cria a expectativa de que os países esperem resultados no âmbito regional, como opção factível a um desgastado âmbito multilateral. O enfraquecimento do modelo multilateral é perceptível pela exclusão de grandes regiões do mundo dos principais acordos de comércio. No caso do TPP, até a China – maior economia do mundo pela Paridade do Poder de Compra – está fora. Há, no entanto, um prêmio de consolação.
Visto que o sistema erigido em torno da OMC avança com extrema dificuldade, a assinatura de acordos regionais é um alento e aponta para alguma abertura comercial, o que é melhor 5 do que nenhuma. E o sistema da OMC continua tendo centralidade como foro de solução de controvérsias, o que não é desprezível. Ainda que o candidato pudesse apresentar um balanço dos prós e contras, seria importante posicionar-se quanto ao que avalia como o saldo final dos acordos regionais diante do multilateralismo.
Considerações gerais sobre a prova de Geografia do CACD
A correção da prova de geografia na 3ª fase do CACD foi marcada, durante muito tempo, por uma grande flexibilidade que ocasionava notas altas em relação ao que foi efetivamente respondido por alguns candidatos. Essa flexibilidade se mantinha na análise de recursos, caracterizada por expressiva majoração nas notas atribuídas na correção inicial. Nos últimos anos, isso mudou. A rigidez marcou a correção da prova de geografia nos últimos concursos e a quantidade de notas alteradas a partir dos recursos sofreu expressiva redução. Ainda assim, é possível indicar alguns pontos a serem considerados para aumentar a chance de sucesso dos recursos. Como não temos indicações dos erros ou omissões importantes que levaram a penalização que está sendo questionada pelo candidato, a dificuldade para a elaboração do questionamento à nota atribuída aumenta. Como estratégia para facilitar a redação do recurso destacamos os principais elementos que deveriam ser discutidos em cada questão. Você deve apontar os trechos da sua resposta (indicando o número das linhas) em que analisa esses pontos fundamentais demonstrando como atendeu ao que foi comandado pela banca. Esqueça seus possíveis erros e omissões, concentre o seu recurso nos pontos principais da sua resposta indicando, portanto, que a penalização foi exagerada. Após escrever o seu recurso, você deve nos remete-lo para possíveis sugestões de alteração.
O tema urbanização é dos mais relevantes para a ciência geográfica sendo entendido como o aumento da participação urbana na população de uma determinada área geográfica. A questão pedia aos candidatos análise de mudanças recentes no processo de urbanização associadas ao processo de globalização. Como características básicas do processo de urbanização na escala global, os candidatos poderiam citar a universalização do fenômeno, gerando dinamização dos sistemas urbanos mesmo em continentes que ainda possuem predomínio da população rural, como são os casos da Ásia e África. Além da taxa muito elevada da urbanização da América Latina que tende a ser a área mais urbanizada do planeta.
No Brasil, além da elevadíssima urbanização total (que se aproxima de 90%) e do fato das 5 macrorregiões serem majoritariamente urbanas, deve ser destacada a complexificação da rede urbana associada a estruturação de metrópoles localizadas distantes do litoral e o aumento da importância das cidades médias. Esses dados são básicos na análise de qualquer questão sobre urbanização, no entanto, considerando o parágrafo introdutório da questão, é fundamental destacar o impacto dos avanços técnicos das comunicações na estruturação do Espaço Geográfico, notadamente na integração da economia mundial e no papel das áreas urbanas.
Diversas antigas metrópoles que se estruturaram como centros industriais se converteram em cidades Globais, ou seja, se configuraram como um nó ou ponto nodal entre a economia nacional e o mercado mundial, congregando em seu território um grande número das principais empresas transnacionais; cujas atividades econômicas se concentrassem no setor de serviços especializados e de alta tecnologia, em detrimento das atividades industriais. A origem do conceito de cidade global está diretamente relacionada aos impactos causados sobre as metrópoles dos países de desenvolvimento mais antigo pelo processo de globalização da economia, desencadeado a partir do final dos anos 70.
As transformações na economia mundial teriam conduzido a uma crise da centralidade econômica daquelas metrópoles que perderam o controle sobre as atividades industriais, porque as empresas por elas responsáveis, favorecidas pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação e informação, passaram a dispor de maior flexibilidade para escolher os lugares de menor custo para suas sedes. Esse processo foi acompanhado de mudança no perfil das metrópoles que, em substituição às atividades industriais, passaram a sediar empresas de prestação de serviços altamente especializados, ligados em sua maioria ao setor financeiro e da informação e de origem quase sempre transnacional.
Se, por um lado, as metrópoles pareciam caminhar para um futuro incerto, por outro, readquiriam importância estratégica como locais destinados ao setor terciário, acompanhando a mudança de direção da economia mundial. Não se tratava, portanto, da perda de sua centralidade econômica, mas de sua ressignificação no interior do sistema produtivo internacional. A questão pedia, também, o impacto dessas transformações no interior do Espaço Urbano das principais cidades do mundo.
O processo de transição das antigas metrópoles industriais para as atuais cidades globais foi acompanhado, inicialmente, pela degradação de diversas áreas. Posteriormente, emergiram ações que visaram a renovação, reabilitação, requalificação, revitalização e refuncionalização dos centros degradados de cidades, como alternativas para tratar dos problemas físicos, sociais e econômicos que se perpetuavam nas áreas urbanas mais antigas, os chamados centros históricos. Essas modificações foram ao encontro do interesse de corporações que buscavam espaço para suas tarefas de comando.
Fica claro que determinadas partes das principais cidades do mundo vão ser estruturadas com base em ações e objetivos externos e não, necessariamente, aos interesses de parte expressiva da população local. É possível usar o conceito de verticalidade e horizontalidade, do professor Milton Santos. Assim como citar, uma série de ações de resistência em áreas urbanas no Brasil e em diversos países do mundo. Outros conceitos que podem ser utilizados nessa questão são os de Gentrificação, Especulação Imobiliária, Lugar e Alteridade Urbana. Entre as possíveis citações, além de Milton Santos (grande estudioso de urbanização, globalização e do papel das técnicas na organização do espaço geográfico), o candidato poderia citar o geógrafo David Harvey (direito à cidade) e os sociólogos Manuel Castells (Sociedade em Rede) e Saskia Sassen (criadora do conceito de cidade global).
Essa questão trata da enorme importância e riqueza natural do território brasileiro que possui diversos recursos que podem ser decisivos para o nosso desenvolvimento. Possui uma dificuldade extra com o número de linhas, relativamente pequeno, para o grade número de exemplos e análises possíveis em um tema tão importante para a geografia, o que obriga o candidato a se concentrar nos mais importantes e destacados no próprio comando da questão. Entre os recursos que podem ser apontados (é possível citar Claude Raffestein, que analisa a importância dos recursos na obra Por uma geografia do poder) destacamos:
– A maior biodiversidade do planeta associada ao tamanho do nosso território e também a nossa condição intertropical (Alexander Von Humboldt analisou, em sua viagem pela América do Sul, a importância da temperatura e umidade no desenvolvimento vegetal)
– O Brasil possui o maior volume de água doce superficial do mundo (em torno de 12%), em grande parte por causa da exuberância da Bacia Amazônica e, importantes volumes de água doce de subsolo, com destaque para o Aquífero Guarani e o SAGA
– Sistema Aquífero Grande Amazônia (inclui o Alter do Chão)
– A dimensão territorial pode ser citada como elemento importante para o país que já é o 2º em exportação de alimentos no mundo, apesar de usar menos de 10% do território para lavouras.
– O papel da Amazônia, grande volume de recursos hídricos e enorme biodiversidade pode ser destacado (a ressignificação do conceito de Mackinder pela geógrafa Bertha Becker, que definiu a Amazônia como Heartland Ecológico do planeta, pode ser utilizada na resposta).
– O enorme potencial natural tem que ser destacado, assim como uma ocupação historicamente predatória que começou a ser alterada com a criação da Política Nacional de Meio Ambiente em 1981, um marco para o ordenamento territorial no país. –
A necessidade de maiores investimentos no aproveitamento desses recursos, também merece análise. O ponto essencial é a conversão, ainda baixa, de nossa grande biodiversidade em biotecnologia, apesar de tentativas como a CBA
– Centro de Biotecnologia da Amazônia criado no âmbito do Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade – PROBEM
– Ao analisar o acesso e apropriação aos recursos genéticos, é muito útil destacar o Marco Legal da Biodiversidade, sancionado em 2015, além da situação atual do Brasil no Protocolo de Nagoia. Se o candidato não destacou essa evolução recente, é necessário ao menos, uma alusão à importância e desdobramentos da Convenção da Diversidade Biológica.
—-
Direito Interno
Essa questão somente tinha um defeito: valia somente 20 pontos (aliás, era necessário que pessoas que já fizeram a terceira fase prestassem certa atenção, já que, em oposição ao habitual, as questões de 40 linhas eram as duas primeiras). Incorporação e hierarquia de tratados em nosso direito interno estão entre os temas mais batidos em toda a doutrina que se preocupa com o estudo do DI no Brasil. Em relação aos dois debates essenciais que o enunciado claramente requeria (fases do processo de incorporação de tratados / posição hierárquica dos tratados em nosso direito interno), considero que a resposta precisava ser organizada em torno de quatro pilares centrais, levando em consideração nossa legislação e a jurisprudência do STF sobre o tema: os artigos 49, I e 88, VIII da CF/88 (quanto à necessidade de aprovação parlamentar ou possibilidade de acordo executivo); a ADI 1480/CR 8279 (no que se refere aos passos que precisam ser desempenhados para a incorporação de tratados no Brasil); o RE 80.004/77 (que explicita a hierarquia ordinária de tratados de direitos humanos após sua incorporação); e a EC 45/04 e o RE 466.343 no que concerne à hierarquia dos tratados de direitos humanos (quem quisesse poderia também formular rápido comentário sobre o art. 98 do CTN a respeito dos tratados sobre matéria tributária, mas deveria citar nesse caso a posição do STF). Em resumo extremo, pode-se afirmar que as fases podem ser resumidas da seguinte forma: (1) quando o acordo em questão exige aprovação parlamentar, por acarretar encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, necessita-se de negociação do acordo pelo Poder Executivo – submissão ao Congresso Nacional para aprovação, que demandará a promulgação de decreto legislativo pelo Presidente do Senado – manifestação da nossa vontade internacional – promulgação de decreto executivo pelo Presidente da República, que permitirá a publicidade e executoriedade do tratado em nosso território; e (2) quando estamos diante de acordo executivo, há negociação internacional, comandada pelo Executivo – manifestação de nossa vontade definitiva – e publicação no Diário Oficial da União, ato que conferirá publicidade ao acordo em nosso plano interno, sendo indiscutível sua vigência a partir desse momento. Quanto à hierarquia, também não acredito que o que escreverei represente qualquer novidade – tratados em geral estão em paridade normativa com nossa legislação ordinária federal (são infraconstitucionais); tratados de direitos humanos aprovados conforme a EC45/04 possuem status equivalente ao de uma emenda à Constituição e são parte integrante do nosso bloco de constitucionalidade; e os demais tratados de direitos humanos, embora infraconstitucionais, são supralegais, sendo suas normas parâmetro para a realização de controle de convencionalidade de forma a verificar à adequação do restante de nossa legislação constitucional face ao que dispõem.
Abstração e realidade, luzes e sombras… é filme de terror? :P#enunciadocurioso.
Brincadeiras à parte, penso que a menção às "luzes e sombras" poderia ter sido uma forma de a banca, nas entrelinhas, chamar a atenção para o fato de que o ato de reconhecimento possui necessariamente tanto componente político quanto jurídico (o primeiro seria representado pelas "sombras", o último pelas "luzes"). É pura especulação minha, óbvio, mas esse raciocínio era fundamental na resposta.
Acredito que os debates essenciais (não mencionarei tudo que poderia ser escrito por falta de espaço) que precisavam ser travados nessa questão envolviam inicialmente a distinção entre personalidade jurídica internacional originária e derivada (a primeira titularizada pelos Estados, a última pelos demais sujeitos de DI), e, em segundo lugar, a natureza jurídica e os requisitos para que o ato de reconhecimento possa ser efetuado. Vi que pessoas mencionaram o caso Bernadotte. Ele cabia aqui? Claro. Mas precisa ser complementado.
Quanto à personalidade jurídica internacional originária, sabemos que somente os Estados hodiernamente desfrutam da mesma. Isso significa que as capacidades internacionais que titularizam decorrem diretamente da natureza e da estrutura da atual sociedade internacional. Dessa forma, os direitos e obrigações internacionais dos Estados decorrem diretamente de sua soberania, possuindo todo e qualquer Estado igual potencial de titularizar capacidades internacionais devido ao princípio da igualdade soberana. Ao contrário do que ocorre em relação aos demais sujeitos de DI, as capacidades internacionais dos Estados são inerentes à sua condição enquanto principais sujeitos do atual DI.
A consequência direta dessa realidade está no fato de o reconhecimento de Estado ser ato cuja natureza é DECLARATÓRIA. Isso significa que a personalidade jurídica internacional do Estado surge a partir do momento em que o mesmo assegura sua existência seguindo o atual DI, mediante a reunião dos elementos constitutivos. Caso objetivamente um Estado possa ser assim considerado, o fato de não ser reconhecido não permite a outros sujeitos de DIP recusar-lhe personalidade jurídica internacional, já que a mesma é objetiva. Todavia, como o ato é igualmente político, a sua personalidade jurídica internacional não exige que seus pares o reconheçam, o que na prática impede que o novo país consiga desempenhar capacidades internacionais relacionadas ao relacionamento formal com países que não o reconhecem, por exemplo.
Em contrapartida, os demais sujeitos de DIP possuem personalidade jurídica internacional derivada. Ao contrário do que ocorre com os Estados, as capacidades internacionais desfrutadas pelos primeiros não decorrem diretamente de sua existência, mas sim da atribuição, pelos Estados, de direitos e obrigações a esses últimos. Aqui cabe ressaltar que, entre todos os demais sujeitos de DIP, os únicos que possuem personalidade internacional invariavelmente derivada e objetiva (o que faz com que todos os Estados aceitem sua condição de sujeitos de DI sem exceção) são os indivíduos, embora sua capacidade de recorrer a órgãos internacionais em caso de violação de seus direitos não precise ser reconhecida por todos os países.
Além dos indivíduos, afirma-se também que as organizações internacionais de maior porte possuem personalidade jurídica internacional derivada e objetiva. O caso Bernadotte (que citei acima), além de reconhecer que OIs como a ONU possuem tal personalidade, mencionou que as organizações com mais de 50 membros, por exemplo, não poderiam ter sua condição de sujeito de DIP recusada mesmo por quem não tivesse a qualidade de membro, já que suas capacidades internacionais seriam indiscutíveis. Mas há OIs em que a doutrina ainda admite o questionamento da personalidade jurídica internacional, sendo essa qualificada – isso ocorre quando há dúvidas sobre a real autonomia da OI frente aos seus membros.
Por mais que em relação aos indivíduos haja discussões quanto à afirmação de que eles, e não os Estados, seriam os sujeitos de DI por excelência, quem leu o texto que passei sobre indivíduos na preparação para a terceira fase sabe que não é bem assim. A personalidade deles é passiva, já que eles não são responsáveis pela criação das normas internacionais responsáveis por definir seus direitos e obrigações internacionais. Da mesma forma, as OIs têm seus direitos e obrigações fixados pelos Estados para que possam atingir seus objetivos (princípio da especialidade – poderes implícitos). Nesse aspecto, o reconhecimento de personalidade a essas pessoas é CONSTITUTIVO no que concerne às capacidades que podem titularizar, não possuindo tais pessoas capacidades que os Estados não estão dispostos a conceder. E obviamente também aqui existe componente político no ato de reconhecimento.
Por fim, quanto aos demais sujeitos de DI, como os beligerantes, a Santa Sé e o CICV, para mencionar três exemplos, além da personalidade derivada, os mesmos somente são sujeitos de DI para os Estados que os reconhecem (personalidade jurídica internacional qualificada). O componente político aqui também é fortíssimo, já que o mero preenchimento de requisitos fáticos é insuficiente para a atribuição da personalidade jurídica internacional sem a vontade política. Não vejo, entretanto, o que escrevi acima como única forma de responder essa questão. Acredito que o gabarito aqui será maleável.
Tendo como referência o trecho do texto apresentado acima, disserte sobre os possíveis efeitos das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos… Essa questão, tal como a 02, não apresentava maiores dificuldades na identificação das discussões fundamentais para que a pontuação máxima pudesse ser obtida – bastava responder aos questionamentos formulados ao final do enunciado. Passemos a eles, então:
1 – Possibilidade/impossibilidade de reconhecimento, pelo DI geral e particular, de efeitos erga omnes a sentenças de tribunais internacionais.
O que afirmarei aqui não difere muito daquilo que procurei explicar naquela aula em que comentamos o parecer consultivo da CIJ no caso Legalidade na Declaração de Independência do Kosovo – logo, se você se lembrava dessa aula, bastava recuperar alguns raciocínios que lá formulamos. Os textos do Leonardo Nemer Caldeira Brant e da Anne Peters sobre a relevância de decisões e pareceres consultivos no processo de interpretação e aplicação do DI contemporâneo também possuem argumentos interessantes que poderiam ser empregados. Basicamente, sentenças de tribunais internacionais não se destinam prima facie a gerar efeitos erga omnes, já que somente se destinam a obrigar os Estados litigantes a respeito do caso em questão (como é o exemplo clássico do artigo 59 do Estatuto da CIJ). Em outras palavras, o fenômeno da coisa julgada formal somente se verifica inter partes, já que formalmente somente os litigantes consentiram com o exercício de jurisdição. Contudo, a análise restaria extremamente incompleta se terminasse por aqui.
Em verdade, a autoridade das sentenças dos tribunais internacionais decorre da própria natureza jurisdicional dos mesmos. Por exemplo, o princípio "Kompetenz-Kompetenz", ao conferir em última instância poderes aos órgãos jurisdicionais para aferir sua capacidade em atuar em determinada disputa, exprime que o consentimento dos Estados, embora essencial, pode ser averiguado por terceiro para que seja alcançado o objetivo maior de garantir estabilidade às relações internacionais mediante a obtenção de uma solução pacífica para a controvérsia em questão. Nesse espírito de se buscar a realização dos objetivos da sociedade internacional, embora as sentenças de tribunais internacionais não sejam reconhecidas como obrigatórias a todos, não se pode esquecer que, materialmente, a mesma pode afetar a terceiros de diversas formas.
Em primeiro lugar, a formação de coisa julgada material pode vir a afetar terceiros Estados cujos litígios sejam exatamente idênticos a casos examinados no passado por tribunais internacionais. Embora a figura do precedente não seja vinculante, cortes internacionais procuram seguir uma consistência jurídica em seus julgados, recorrendo a normas empregadas no passado para fundamentar novos julgamentos no futuro. O fenômeno do diálogo entre as cortes faz com que os tribunais estejam constantemente acompanhando a jurisprudência dos seus pares, o que facilita a uniformização na aplicação do DI, e a consequente repetição de argumentos empregados em julgamentos anteriores quando suficientemente persuasivos. Ao interpretar tratado, costume ou outra fonte do DI, ou mesmo ao revelar a atual situação de determinada norma internacional, a jurisprudência dos tribunais pode modelar a forma com o DI é compreendido na atualidade, o que certamente impingirá na forma como outras controvérsias serão resolvidas. Por fim, decisões que versem sobre situações jurídicas objetivas – como delimitações territoriais – criam de facto direitos erga omnes para o vitorioso na decisão, já que terão que ser reconhecido por toda a comunidade internacional.
2 – Aplicabilidade ou não da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao direito interno de Estado que não figura como parte de contencioso decidido.
Nesse diapasão, cabe inicialmente ressaltar que a Corte não tem poderes para alterar diretamente o direito interno mesmo dos Estados que são diretamente condenados por suas decisões. Ela somente verifica que o mesmo está em desacordo com o disposto na Convenção Interamericana (ou ,excepcionalmente, com o Protocolo de San Salvador), e determina que as autoridades estatais promovam mudanças para adequá-lo às obrigações internacionais do Estado em questão. Todavia, como mencionava o próprio fragmento citado no enunciado, a Corte Interamericana é a principal intérprete da Convenção Interamericana – o fato de a legislação do Estado não estar de acordo com suas sentenças pode levar a, no futuro, ser condenado devido a violação das normas contidas nesse diploma convencional. É nesse sentido que se encaixava a expressão "controle de convencionalidade ex officio", já que os tribunais internos não precisam, por exemplo, esperar uma situação que viole internamente direitos humanos chegar ao conhecimento da Corte – percebendo que sua orientação é contrária ao disposto nas normas domésticas, devem as autoridades internas em geral já tomar as providências necessárias dentro das suas atribuições para garantir cumprimento à Convenção Interamericana, sob pena de poder seu Estado ter sua responsabilidade internacional afirmada no futuro.
Obviamente a questão não exigia discussão sobre a simbiose entre o Tribunal de Justiça da UE e as cortes internas dos Estados-membros da UE, mas existe ampla doutrina sobre como o primeiro, por exemplo, se vale da cooperação dos últimos para garantir a prevalência da aplicação do direito europeu. Quando há jurisprudência da Corte Europeia, em particular naqueles casos onde atuou em sede de reenvio prejudicial, esse tribunal estimula que as cortes domésticas façam desde logo uso de suas decisões em casos que envolvem partes completamente distintas para encontrarem a melhor interpretação do direito europeu aplicável ao caso concreto que estão examinando. Isso desafoga, a um, o "workload" do TJ da UE, e, a dois, permite que, embora a decisão não seja diretamente aplicável, que todos os operadores do direito tenham plena consciência de que o direito interno é incompatível com o comunitário, e que consequentemente não possui qualquer chance de continuar a ter sua aplicação garantida.
É verdade, ainda, que esse raciocínio vale especialmente para as sentenças que versam sobre o disposto na parte inicial do art. 63, §1º da Convenção Interamericana, já que o pagamento de indenizações não se destina a promover mudanças no direito interno, mas sim a reparar mal causado. E é igualmente verdade que a Corte não possui poderes executórios para assegurar que o direito interno será de fato alterado, como bem demonstra o caso Guerrilha do Araguaia (Gomes Lund e outros x Brasil). Mas é inegável que a sentença poderá suscitar medidas internas naquelas situações onde as autoridades internas estejam suficientemente dispostas a garantir a proteção dos direitos humanos envolvidos, tal como o relatório (não-obrigatório, por sinal) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso Maria da Penha provocou, no Brasil, a criação de legislação específica para proteger as mulheres contra agressões domésticas.
—
3. História do Brasil
—
4. Língua Inglesa
—>>>